Na translação terrestre, imune às idiossincrasias humanas, o planeta cumpre a órbita elíptica, e com ela, seguem os seus habitantes, aos milhões espalhados, fiéis ou insurretos dos seus princípios, expressando-se numa semana mais, uma mais, que não é afinal tão igual às outras, sendo distinta num ponto cardeal só seu: Santana.
A celebração do quadragésimo aniversário da sua Escola Básica e Secundária avizinha-se. Ainda parecia lá atrás, há algumas semanas, quando no seu pavilhão central, o calendário emoldurado num estilo quase manuelino, enriquecido com as suas janelas singulares, ensinava-nos a contar os dias, um de cada vez, colocando-nos esperançosamente nesse momento que haveria de vir, circunstância a transbordar de sentido, nesse futuro tão próximo que almejava honrar o passado, festejar o presente, sonhar o vindoiro. Não houve uma voz que não falasse desse advento, com certeza uma face que se apercebia do significado de atravessar a data, de vivê-la, de senti-la, de fazer parte, provavelmente, a absoluta certeza de arquivar, na sua alma, uma memória do tamanho da realidade do seu mundo. “Venha esse dia!”, seguramente assim se pensou, quer para si mesmo, quer para o outro.
25 de novembro de 2022. Esse dia, a data aguardada. O equinócio invernal não ilude. Sem avisar, o sol partiu cedo para o hemisfério sul, não sendo mal educado, tão só ansioso de iluminar outras vidas. Imutável, ficou a nossa ilha da Madeira, entregue à beleza da sua noite. Atenta, estava a Lua. Crescia nos olhares de quem a observava, iluminando-os, tal e qual aquela Estrela do Norte, guiando-os pelas vias lácteas das suas existências. Talvez tenha escutado, sem ser bilhardeira, e logo aí tenha sabido, querendo muito se ter aproximado da Terra o quanto possível, que a 384.000 quilómetros de si mesma essa escola comemorava quarenta anos, uma idade tremenda, em que tudo parece ter passado tão depressa, assim como aqueles grãos de areia que se esvaem numa ampulheta; ou onde tudo parece ter acontecido num sonho, tal e qual a destreza da sua concretização; e, decerto, em que tudo se tornou numa exploração transatlântica, sem noção de se repetir a travessia, na assertividade de não se deixar de avistar o horizonte. Sempre.
Na latitude do seu corpo, na longitude do seu espírito, a cidade estendeu os seus braços àqueles que chegavam, todos engalanados, acompanhados com os seus pares, dentro das suas cores condizentes, preferidas também, cumprimentando-os educadamente, feliz por acolhê-los numa casa conhecida. Lá dentro, convidando-os a entrar, a memória fotográfica foi digna de se exibir, envaidecida com as suas qualidades, sobretudo essa, a de suspender o tempo, de fixá-lo num instante, de representá-lo numa imagem. Aproveitou, e muito, a contribuição da ornamentação. Esplendorosa, metafísica quase, de tão para lá que esteve da física das coisas. Inteiramente sustentável, adornos completamente recicláveis, água que nunca foi esbanjada, utilizada estritamente quando necessária, um embelezamento cenográfico assente em todos os princípios ambientais como nunca vistos. Um crime de lés à pátria se não se confessasse a grandiosidade do propósito, em particular a coerência entre pensar e fazer, ela que tanto se quer e urge acontecer nesta pressa climática. Lá fora, sempre que podia, a Lua não hesitava espreitar. Fosse um ou não um vislumbre, deslumbrada estava, e certamente, deverá ter sorrido, muito orgulhosa mesmo, depois de saber que o ecossistema do seu planeta predileto não havia sido transgredido.
Já na sala, reunidos à volta das mesas, os casacos já se despiam; as gravatas já se desalinhavam; as mangas das camisas já se dobravam. Acomodados, e acomodando-se as conversas também, os rostos de uns buscavam o olhar de outros; os risos ditavam as suas leis, imperavam sobre o reino das lágrimas, pelo menos ainda, pois as conversas têm o condão de estar amarradas à emoção da ausência; e o presente, o aqui e agora da ceia, confraternizava com o passado, não querendo saber do futuro, para já, suspenso de toda a sua mansuetude, desconcertado pela beleza da atuação musical dos seus ex-alunos, tão sublimes ambos, tão devotos ao seu amor.
Mas é hora de compreender TUDO. A projeção do vídeo faz questão disso. Silêncio. Não é uma sessão de cinema qualquer, nem sequer um filme de fraca classificação. A plateia está atenta, ávida de saber, de ficar a par da sequência de todas as histórias encontradas na História mãe. O instante é solene. Pressente-se nos rostos. É o significado do aniversário; é a viagem interior; é a deslocação para dentro das imagens, que nos puxam para si, e que levados pela música, harmonia celestial sem fim, nos prendem o olhar. Afinal, são quarenta anos; são muitas as pessoas que cruzaram o seu espaço de vida, os corredores do seu tempo; são muitas as circunstâncias, as vicissitudes e os desafios, as ousadias e as frustrações, as alegrias e as tristezas, as angústias e as jubilações; é o tempo incomensurável que se mostrou sem rodeios, que se apoiou na força dos rostos anónimos e visíveis, que os tornou alicerces de uma vontade humana desmedida, do desejo de fundar uma sociedade, da ambição de mudar uma região, quiçá, da intrepidez de transformar o mundo acquém do Atlântico. Impera a emoção. Tão visível. Há faces que não se escondem atrás das lágrimas.
Muito plausível que a Lua não se tenha ficado atrás. Não há provas, mas apenas indícios, de que quis cantar os parabéns com todos os presentes; de que quis segurar uma estrelinha individual, como todos o fizeram; de que quis apagar a sua vela, e na escuridão concertada, ver-se brilhante e a brilhar, como todos os outros, personagens de um conto encantado. Até a Terra, ao que parece, iludiu-nos da paralisação da sua rotação. E a dança, inquestionavelmente, foi consequência disso. Importou trocar os passos, inventar ritmos, baloiçar ao som do seu DJ, imbuídos na magia dos seus néons, num dos raros momentos em que um ex-discente comanda as hostes docentes. E cantar. Também se cantou, e muito, e se desafinou, o quanto baste. E sopraram-se as velas. E fez um, dois, perderam-se as vezes desses brindes.
Há noites assim. Que sabem ser diferentes, que se resumem numa só, tal e qual o calendário Inca nos mostrou, onde há nele um dia a mais que os outros, mas sempre esse dia que congrega o significado, que lhe define a sua existência, que lhe acentua o seu ser.
Equipa: professores Ângela Morais, Sandra Anastácio, D. Fátima Mendonça, Pedro Barreiros, Marco Sousa, Nuno Costa e Fabiana Matos.